domingo, 14 de junho de 2009

QUE GIRE A RODA, QUE FOI DADA A CORDA

Quatro e meia da manhã. Os carros já se ouviam. Alguns. Em verdade, quase nenhum. Tão poucos, que seus sons entravam em dissonância com a harmonia doce do silêncio. Pássaros nem pensar, que estes davam o ar de sua graça mais tarde. Céu chumbo com nuvens apessegadas e um cheiro gelado que queimava agradavelmente o espírito. Não dava para se saber como seria o dia e ainda teria muito dia pela frente. Mas passaria rápido, porque todos os dias, há muito tempo, que se passavam rápido, cada dia mais, talvez desde que eu tenha percebido isso ou, talvez até, desde sempre. Sei lá. O bom era saber que, a estas horas, as maldades e catástrofes dormiam, talvez não todas. Quem dera poder parar o tempo aí, onde tragédias estariam adormecidas. Não se despertaria, não se sairia de casa, não se iria ao trabalho, não se faria nada... Pensando bem, esta talvez fosse uma tragédia maior, um mundo adormecido, sem sentido(s). Que o mundo acorde. Que passem as horas. Que gire a roda, que foi dada a corda.

AMAR É AMAR E SÓ

Parece, que mesmo sem querer amar, amou. Parece, que mesmo assim, mesmo distante, se aproximou. Para que dizer o que se dizia em se sentir? Para quê?
Não era bom, nem era ruim. Apenas era. Ou talvez fosse bom e fosse ruim. Talvez só fosse. Sem adjetivos. Sentia-se. Só.
Amou de maneira simples, sem se saber o amor. Nem sentiu tanto, nem pranto, nem dor. Sentiu sem saber o quê, o porquê. Nem queria saber.
Tinha vontades voláteis, volúveis. Tinha quereres, prazeres solúveis. Tinha dias, tinha noites. E tinha dias e tinha noites que não os tinha.
Não era desses amores exagerados, extremados, epilépticos e até catalépticos. Sentia-se. Era de um tipo mais gostoso, mais sincero e enxuto. Desses de se querer bem a outrem porque, assim, bem se faz a si também.
Não se doía em se ter. Mas se sentia doer em se pensar em perder, porque alguém uma vez disse que ausência é presença e, neste caso, presença da ausência. Sentia-se.
Não era difícil amar, era difícil falar amar, porque amar não tem falar. Amar é amar e só.

sábado, 13 de junho de 2009

GANHA QUEM MAMA

Mana do manto,
Da manta sagrada,
A mancha.

Desmancha a hóstia.
Demanda resposta.
Emana a aposta.

Posta a aposta?
Mana a mancha?
Pergunta: quem ganha?

Ganha quem mama,
Ganha quem manda,
Nunca quem gosta.

DE VEZ EM QUANDO

De vez em quando,
De quando em vez,
Em vez de quando.

Fez que desfez,
Desfez que fez,
Desfez de vez.

Desfez o quando,
Quando o fez,
Uma vez.

Desde quando,
A vez de tal quando
Era uma vez?

Talvez quando quando,
Em vez de quando,
De em quando se fez.

Tal vez, talvez.

terça-feira, 31 de março de 2009

MAR NO OLHAR, OLHAR NO MAR

Mar que arredonda pedra
que arrefece areia
que se arrisca em mar.

Olhar que arremete alma
que arrepia pele
que se arranha em olhar.

Mar que queria olhar,
Olhar que queria mar
que queria amar
cada gota, cada grão,
cada poro, cada vão.

Mar na pedra,
Pedra na areia,
Areia no mar.

Mar no olhar.

Olhar na alma,
Alma na pele,
Pele no olhar.

Olhar no mar.

quinta-feira, 26 de março de 2009

BREVIDADE

Brevidade? Brevidade é nome de doce. Nada de breve pra mim. Não, não quero. Quero tudo muito longo. Não quero passar por passarinho que tem vida brevíssima, só não mais breve do que sua presa inseto. Mas não me ponham em cativeiro, daí não. Dou adeus à longevidade dos pássaros em cativeiro. Daí prefiro ser breve, como pássaro solto. Intensa. Demovo-me da idéia de demorar-me entre as quatro paredes do olhar do outro. Mil vezes os quatro cantos do olhar de ninguém.
Afasto-me do meu próprio olhar, pois tenho mania de me olhar com o olhar dos outros... Tenho que aprender a parar meu olhar fora de mim e a ser intensa como pássaro selvagem. Ser predadora, ainda que presa. Ser implacável, já que natureza.

TINHA ESCOLHIDO ASSIM

Não cabia em si de tanta infelicidade e queria caber, pois cabendo não transbordaria a ponto de perceberem. Não gostava de ser percebida em suas tristezas. Gostava de ser feliz, ou de parecer. Era assim que tinha aprendido, era assim que sabia ser, “parecer”. Não ousava ser, ousava parecer, se é que se é ousado quando apenas se parece ser.
Ainda não tinha aprendido a dizer não. Aquele "não" despido de justificativas. Aprendeu que as justificativas faziam doer menos. Não queria causar dor. E aprendeu que também ninguém percebia que as justificativas eram mentiras bonitas. Porque a beleza é sempre bem-vinda.
Aprendeu a ouvir e a calar. Não que não tivesse vontade de ser ouvida ou de falar, mas sabia que o seu silêncio permitia a exposição do outro. E na exposição do outro poderia entendê-lo mais, ainda que, assim, por vezes, entendesse a si mesma menos.
Estava deste jeito, sentindo-se encolhida. Presa na sua maneira de não ser. Tinha escolhido assim. E se toda escolha pressupõe liberdade, estava presa na sua própria liberdade.
Mas disso ninguém precisava saber...