quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

A MENINA E A TERRA


A terra amamentava de sonhos o coração da menina e ali, deitada, podia experimentar, com seu corpo, a textura bruta e rugosa daquele tapete sob sua pele rosada e delicada.
E por cima da superfície áspera, a menina quis sonhar mais, e sonhou. Quis sentir mais, e sentiu.
O chão irregular a tocava de maneira inocente, mas despertava um desejo audaz e desmedido de conhecer-se toda.
Fechou os olhos e, agora, podia também absorver o cheiro da terra, cheiro molhado, confundindo-se com sua própria seiva.
A terra causava sensações estranhas na menina que, ainda de olhos fechados, sentia os pêlos eriçando, tal como estivessem germinando.
A menina, antes exposta como uma clareira na mata, já respirava com dificuldade e, assim, arquejando, arqueava seu corpo numa luta bendita consigo mesma. Sentiu-se flor se abrindo. Sentiu também o suor percorrendo caminhos antes traçados por suas mãos, descobrindo cada detalhe de seu corpo, agora seu de fato.
A menina quis falar, sorrir, chorar, mas não precisava. Estava plena de si. Fartou-se de si mesma.
Queria, agora, adormecer porque sabia que, ao acordar, a vida continuaria, o dia seria longo e ainda tinha outras terras para descobrir, muitos sonhos para plantar e irrigar com suas idéias de menina.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

NÃO ATIRE PALAVRAS EM MIM

Menino com coração de cowboy,
o mundo é torto, e daí?
Tragédia vista em revista
e até bem quista por ti.

Mas em nossa entrevista
não feche as portas,
não vista palavras tortas,
Nem as atire assim, assim.
Palavras são copos de vidro lançados,
Estilhaços, pedaços, marcas, farpas
Engastadas em mim, em mim.

Tua fonte me interessa
E eu nem tenho tanta pressa.
O que te falta e o que te sobra?
O que te ergue e o que te dobra?

Não adianta querer o sétimo lado do dado
Ou a terceira face da moeda
Quando a vida é cara ou coroa
e o mundo é uma merda.

Mas em nossa entrevista
não feche as portas,
não vista palavras tortas,
Nem as atire assim, assim.
Palavras são copos de vidro lançados,
Estilhaços, pedaços, marcas, farpas
Engastadas em mim, em mim.

Eu queria só um pouquinho de prazer
Sentar num canto com você
Tomar emprestado o teu suor
tua saliva, tua dor.

A grana acaba, a casa desaba
A garganta seca, a alma aperta
O corpo dói, o coração rói
A cabeça gira, a boca atira.

Mas em nossa entrevista
não feche as portas,
não vista palavras tortas,
Nem as atire assim, assim.
Palavras são copos de vidro lançados,
Estilhaços, pedaços, marcas, farpas
Engastadas em mim, em mim.

Pra que futuro, pra que passado?
O negócio é estar lado a lado.
Eu quero é hoje, eu quero agora
O resto a gente joga fora.

A madeira lapidada foi tosca,
a manhã ensolarada fosca,
e você pega teus problemas toscos e foscos
e vai derretendo tudo com gosto.

Mas em nossa entrevista
não feche as portas,
não vista palavras tortas,
Nem as atire assim, assim.
Palavras são copos de vidro lançados,
Estilhaços, pedaços, marcas, farpas
Engastadas em mim, em mim.

Eu passava desamada, desalmada
Armada, cansada
Mas vi vida no teu ser
E também quis existir em você.

Menino preso na teia
O sistema é mesmo uma cadeia
Dever pedra, dever favor
Nascer escravo e devedor

Mas em nossa entrevista
não feche as portas,
não vista palavras tortas,
Nem as atire assim, assim.
Palavras são copos de vidro lançados,
Estilhaços, pedaços, marcas, farpas
Engastadas em mim, em mim.

Eu te entendo até
Queria nem entender
Porque aí já tinha me mandado
Antes do peito doer.

O ser humano não tem vergonha não
Você tem mesmo razão
Tá com ódio, tá com raiva?
Vai servir sopa envenenada?

Mas em nossa entrevista
não feche as portas,
não vista palavras tortas,
Nem as atire assim, assim.
Palavras são copos de vidro lançados,
Estilhaços, pedaços, marcas, farpas
Engastadas em mim, em mim.

Menino, menininho
Era só um carinho
Te tocar, te sentir
Ver e partir.

Quem vê tua cara, hoje não vê felicidade
Você odeia gente, chama todos de bêbados, sujos, drogados,
malditos hippies pestilentos,micróbios fedorentos
malandros vestidos de malandros, mulambos.

Mas em nossa entrevista
não feche as portas,
não vista palavras tortas,
Nem as atire assim, assim.
Palavras são copos de vidro lançados,
Estilhaços, pedaços, marcas, farpas
Engastadas em mim, em mim.

Eu não te vejo assim
Ainda sinto o menino
Que anda perdido no mundo
Com o mundo dentro de si.

Vai pro mato montar casa de pedra e pau?
Montar estufa, plantar skunk?
Vender no Rio...
Acabar com esta gentalha que te faz mal?

Mas em nossa entrevista
não feche as portas,
não vista palavras tortas,
Nem as atire assim, assim.
Palavras são copos de vidro lançados,
Estilhaços, pedaços, marcas, farpas
Engastadas em mim, em mim.

Eu queria o menino, o homem, a falha
Teu ódio, amor e navalha
Um pouco do mel, um tanto do fel
Entrar inteira em tua fornalha.

Você tira sarro da vizinha ridícula, que é uma mãe chinfrim
Pegou birra da filha pestinha, a Caroline “chorolina”
Aí a menina vai pra escola, educa-se, muda pra doce o que era sal,
Você vê que perdeu a graça, não vai ter do que falar, praticar o teu mal.

Mas em nossa entrevista
não feche as portas,
não vista palavras tortas,
Nem as atire assim, assim.
Palavras são copos de vidro lançados,
Estilhaços, pedaços, marcas, farpas
Engastadas em mim, em mim.

Vamos pegar bexigas pequenas, querido
Encher de água, dar nó, acertar um no outro
As crianças também querem, vai ser divertido
Olhe, você disse, elas estouram e não ferem.

Mas você também diz que grana é tudo
Que Jesus Cristo, sem ela, não é nada
Que melhor é estar drogado, na fantasia
E do que está ruim dar risada.

Mas em nossa entrevista
não feche as portas,
não vista palavras tortas,
Nem as atire assim, assim.
Palavras são copos de vidro lançados,
Estilhaços, pedaços, marcas, farpas
Engastadas em mim, em mim.

Menino, eu queria tão pouco,
Tua voz, teu cheiro, teu gosto
Segurar tua mão, jogar o teu jogo
Me queimar toda em teu corpo.

Sonhos de metal, casa, saúde, amor,
Pra você tudo é grana
Me mandou ter vida social
Transar com um cara bacana.

Você me fechou as portas
Me atirou palavras tortas
Suas palavras são copos de vidro, menino
Assim, atiradas em mim.
Pedaços
Estilhaços
Marcas
Fim.

E eu até te entendo...

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

SOBRE FORMIGAS ?


Fortes sim, meu amigo, e intrépidas também. Bem sei por que queres ser como formigas... vivem à deriva... e tal não é teu maior sonho? Fundamental ser como formigas. Mas não tudo. Venhas, vou te mostrar um pedaço de realidade interessante... As formigas, como dizes, podem até dormir em costas de leões e pegar carona em asas de passarinho, mas a viagem não sai de graça não. Elas pagam, e bem caro, por serem cegas a tudo aquilo que é mais do que o seu mundo bidimensional pode alcançar. Enxergam pequeno e somente andam para frente ou para trás. Disse o físico* que o grilo sabe mais porque, pulando, reconhece a existência de uma terceira dimensão. Mas não queiras ser como grilo não, meu amigo, porque nem formigas, nem grilos, segundo o físico, reconhecem dimensões invisíveis, aquelas tão pequenas que são impossíveis de ver. Aliás, não queiras ser como ser vivo algum, pois que nenhum consegue enxergar tais dimensões cuja existência ainda não foi comprovada, apesar de real... Meu pequeno, sejas só poeta, pois poeta não precisa de olhos, nem de microscópios, precisa apenas daquilo que sempre lhe foi inerente: a imaginação... e a tua, caro amigo, há muito que viaja à deriva e de graça por todas as dimensões...


* Marcelo Gleiser

sábado, 14 de fevereiro de 2009

DEIXA EU DIZER QUE TÔ CANSADO

Deixa eu dizer que eu tô cansado, cansado e com raiva, raiva do mundo doente, da hipocrisia desta roda-viva-gigante. Tô com raiva da puta que me pariu e que me partiu, me partiu, me partiu... Tô cansado do discurso do padre, tô cagando pro apelo da freira. Não quero afagos e palavras bonitas. Dispenso a esmola da piedade. Tô estalando, nos dedos, conselhos, um a um. Hoje, tô carente é de verdade. Que se dane a casa arrumada, o chão limpo, a roupa guardada, se eu abro a janela e não vejo nada, nada, nada. Quem sabe o que é certo e o que é errado? Pra onde a roda gira? Quem escolheu este lado? Tô esvaziando as virtudes das minhas gavetas, elas não nunca me serviram pra nada, nem pra mim, nem pra quem se gaba que as tem. As virtudes já nasceram viciadas. Tô farto da caridade e da bondade excessiva. Tô de olho é na sanidade dos loucos. Eu me deito no chão e me encosto na pedra, a garganta está seca e a fumaça derrete minhas retinas, mas já não arde mais. Não preciso que ninguém me entenda, eu preciso é do meu vazio, da luz da minha cegueira, das batidas rápidas do meu coração, que me avisam sobre ainda estar vivo. Eu quero a vida. Eu quero, ainda, o intervalo entre o meu nascimento e a morte.

ACREDITE EM ALGUÉM...

Acredite em alguém que consegue ter saudades de algo que não houve e que enxerga estrelas vivas. Não as que brilham no céu, porque estão mortas há bilhões de anos.
Acredite em alguém que sente que seu melhor sonho foi aquele em que morreu e que se aproxima sem nem chegar perto.
Acredite em alguém que pensa que todas as histórias começam por “era uma vez” porque sabe que nenhuma se foi de forma perfeita.
Acredite em alguém que da sutileza não quer as migalhas. Que a quer em sua forma exagerada e que, deste prato, come e lambe até o fundo.
Acredite em alguém que se esqueceu de começar para não ter que terminar.
Acredite em alguém que não concebeu a idéia para também não a perder.
Acredite naquele que não é, porque, assim, aprende a ser.

EM SEUS MARES

Ele tinha em si todos os mares. E se estava vivo é porque morria neles todos os dias. Ele se dava e os mares o devolviam no vai e vem das marés.
Vivia mareando sei lá por que razão, à procura, talvez do cheiro de umaheresia.
Paixões que ele inventava mergulhavam em seus mares, mas secavam por dentro. Elas eram loucas, intensas da morte em que eram banhadas desde o início. Paixões morriam afogadas em seus mares.
Ele assistia complacente porque sabia que mares atraíam paixões e sabia que compaixão era insuportável, melhor sem paixão.
Assim, permitia que elas morressem e, com elas, morria também... p´ra renascer?

domingo, 1 de fevereiro de 2009

CARIOCA DA CLARA DO OVO

Mulher bonita passa, colore e agita os instintos mais curiosos irrigados pelos seios do mundo. Desenha vestígios de pés que pairam no ar. Quem os segue se perde nos rastros, cego que está.
Mulher alinhada caminha, porque caminhando, com suas claras curvas que sol nenhum ousou tocar, entorpece olhares, bulindo sonhos, remexendo corpos que se querem nela cravar.
Mulher esperta, sorriso de meio canto de boca-de-carmim, calcula passos, à noite, pelas calçadas vestidas de ondas. Não tem a cor do verão nem cabelos soltos ao vento, mas tem olhar de menina e pele macia.
Mulher de insônias insidiosas que provoca febres, convulsões e ereções... deseja e se faz desejar.
Não vai p’ras baladas, não curte samba, não cai na noitada... mas é graciosa, é carinhosa e é carioca também.

MON AMOUR, MON AMI


Vamos jogar fora as palavras. Hoje é dia de ficar mudo. Vamos agarrar o silêncio que tem dito mais, ou quase tudo. Vamos descobrir algo novo, arranjos sonoros que não chegaram a ser, imagens que não se revelaram, ardendo na volúpia que se enrosca e que me toca e que te toca e dá prazer. Vamos encontrar razões desarrazoadas, doidas varridas à luz de lampião de querosene. Vamos erigir mundos, cair em precipícios, libertar almas, aprisionar corações. Vamos ter pés descalços e mãos despalmadas descortinando nossas retinas, retinindo nossos sons, somando nossas lascívias e lacerando nossas memórias. Vamos inventar outra história, rastrear nossos cheiros, desmaterializar o sexto sentido que há muito se rarefez. Vamos enlanguescer nossas pernas, entreabrindo pudores, enlevando as entranhas que enleiam nossas castidades. Não vamos pedir palavras. Hoje não. Vamos pedir silêncio cortado à francesa...et je ne sais pas pourquoi...mon amour, mon ami...

ESTAR POR DENTRO

Hoje eu poderia, mas não vou poder. Hoje estou numa de me perder. Quero caminhos que levam ao sol. Quero curvas que levam a nada e que trazem de volta a mesma estrada. Quero me perder aqui mesmo e me saciar de possibilidades. Quero chuvas desenhando tempestades. Quero a estação dos lírios. Quero estar são em delírios. Quero estilhaçar o pólen que me habita e polemizar de intenções fecundas. Quero o limite dos corpos e o meu sexo servindo a ele. Quero ser cipó cingindo idéias e, no cipoal das idéias, quero estar deitado em teia de enredos lógicos. Quero a teimosia do dia que, depois de uma noite, retorna, ou das horas que se repetem. Quero me repetir, quero me saber, quero brotar de prazer.