domingo, 14 de junho de 2009

QUE GIRE A RODA, QUE FOI DADA A CORDA

Quatro e meia da manhã. Os carros já se ouviam. Alguns. Em verdade, quase nenhum. Tão poucos, que seus sons entravam em dissonância com a harmonia doce do silêncio. Pássaros nem pensar, que estes davam o ar de sua graça mais tarde. Céu chumbo com nuvens apessegadas e um cheiro gelado que queimava agradavelmente o espírito. Não dava para se saber como seria o dia e ainda teria muito dia pela frente. Mas passaria rápido, porque todos os dias, há muito tempo, que se passavam rápido, cada dia mais, talvez desde que eu tenha percebido isso ou, talvez até, desde sempre. Sei lá. O bom era saber que, a estas horas, as maldades e catástrofes dormiam, talvez não todas. Quem dera poder parar o tempo aí, onde tragédias estariam adormecidas. Não se despertaria, não se sairia de casa, não se iria ao trabalho, não se faria nada... Pensando bem, esta talvez fosse uma tragédia maior, um mundo adormecido, sem sentido(s). Que o mundo acorde. Que passem as horas. Que gire a roda, que foi dada a corda.

AMAR É AMAR E SÓ

Parece, que mesmo sem querer amar, amou. Parece, que mesmo assim, mesmo distante, se aproximou. Para que dizer o que se dizia em se sentir? Para quê?
Não era bom, nem era ruim. Apenas era. Ou talvez fosse bom e fosse ruim. Talvez só fosse. Sem adjetivos. Sentia-se. Só.
Amou de maneira simples, sem se saber o amor. Nem sentiu tanto, nem pranto, nem dor. Sentiu sem saber o quê, o porquê. Nem queria saber.
Tinha vontades voláteis, volúveis. Tinha quereres, prazeres solúveis. Tinha dias, tinha noites. E tinha dias e tinha noites que não os tinha.
Não era desses amores exagerados, extremados, epilépticos e até catalépticos. Sentia-se. Era de um tipo mais gostoso, mais sincero e enxuto. Desses de se querer bem a outrem porque, assim, bem se faz a si também.
Não se doía em se ter. Mas se sentia doer em se pensar em perder, porque alguém uma vez disse que ausência é presença e, neste caso, presença da ausência. Sentia-se.
Não era difícil amar, era difícil falar amar, porque amar não tem falar. Amar é amar e só.

sábado, 13 de junho de 2009

GANHA QUEM MAMA

Mana do manto,
Da manta sagrada,
A mancha.

Desmancha a hóstia.
Demanda resposta.
Emana a aposta.

Posta a aposta?
Mana a mancha?
Pergunta: quem ganha?

Ganha quem mama,
Ganha quem manda,
Nunca quem gosta.

DE VEZ EM QUANDO

De vez em quando,
De quando em vez,
Em vez de quando.

Fez que desfez,
Desfez que fez,
Desfez de vez.

Desfez o quando,
Quando o fez,
Uma vez.

Desde quando,
A vez de tal quando
Era uma vez?

Talvez quando quando,
Em vez de quando,
De em quando se fez.

Tal vez, talvez.

terça-feira, 31 de março de 2009

MAR NO OLHAR, OLHAR NO MAR

Mar que arredonda pedra
que arrefece areia
que se arrisca em mar.

Olhar que arremete alma
que arrepia pele
que se arranha em olhar.

Mar que queria olhar,
Olhar que queria mar
que queria amar
cada gota, cada grão,
cada poro, cada vão.

Mar na pedra,
Pedra na areia,
Areia no mar.

Mar no olhar.

Olhar na alma,
Alma na pele,
Pele no olhar.

Olhar no mar.

quinta-feira, 26 de março de 2009

BREVIDADE

Brevidade? Brevidade é nome de doce. Nada de breve pra mim. Não, não quero. Quero tudo muito longo. Não quero passar por passarinho que tem vida brevíssima, só não mais breve do que sua presa inseto. Mas não me ponham em cativeiro, daí não. Dou adeus à longevidade dos pássaros em cativeiro. Daí prefiro ser breve, como pássaro solto. Intensa. Demovo-me da idéia de demorar-me entre as quatro paredes do olhar do outro. Mil vezes os quatro cantos do olhar de ninguém.
Afasto-me do meu próprio olhar, pois tenho mania de me olhar com o olhar dos outros... Tenho que aprender a parar meu olhar fora de mim e a ser intensa como pássaro selvagem. Ser predadora, ainda que presa. Ser implacável, já que natureza.

TINHA ESCOLHIDO ASSIM

Não cabia em si de tanta infelicidade e queria caber, pois cabendo não transbordaria a ponto de perceberem. Não gostava de ser percebida em suas tristezas. Gostava de ser feliz, ou de parecer. Era assim que tinha aprendido, era assim que sabia ser, “parecer”. Não ousava ser, ousava parecer, se é que se é ousado quando apenas se parece ser.
Ainda não tinha aprendido a dizer não. Aquele "não" despido de justificativas. Aprendeu que as justificativas faziam doer menos. Não queria causar dor. E aprendeu que também ninguém percebia que as justificativas eram mentiras bonitas. Porque a beleza é sempre bem-vinda.
Aprendeu a ouvir e a calar. Não que não tivesse vontade de ser ouvida ou de falar, mas sabia que o seu silêncio permitia a exposição do outro. E na exposição do outro poderia entendê-lo mais, ainda que, assim, por vezes, entendesse a si mesma menos.
Estava deste jeito, sentindo-se encolhida. Presa na sua maneira de não ser. Tinha escolhido assim. E se toda escolha pressupõe liberdade, estava presa na sua própria liberdade.
Mas disso ninguém precisava saber...

EU NÃO ACREDITO EM OUTRA VIDA

Eu não acredito em outra vida porque “outro” pressupõe a existência de algo anterior, primeiro e, sem querer ser do contra ou desiludir quem precisa de ilusão, não creio nem na existência da primeira vida.
Não me estranhem mas, de fato, o ser humano vive cada dia da sua existência, considerando o “outro” dia como aquele em que fará aquilo que devia ter feito antes. E nesta sequência ilógica de erros malditos, não vive um dia sequer, realiza pouco ou quase nada.
Não acredito naquilo que se realiza pouco, porque o que pouco se realiza, na verdade, nem chega a existir, de tão incompleto que é.
Somos tão cegos e enxergamos tão pouco que há quem se sinta completamente realizado, achando que encontrou a tal felicidade, o tal amor, sem perceber que nem saiu de si mesmo, que só encontrou o que já existia dentro de si e que é apenas a ínfima parte do que poderia ser. Tão logo pega com as mãos o sonho alcançado, se cansa, porque, em essência, o tudo que se encontra é quase sempre quase nada. O tudo que poderia ser é extra-vida.
Somos seres humanamente iludidos e assim tem que ser, verdade seja dita, porque senão teríamos vontade de jogar fora a nossa falsa vida. A vida é um sono profundo. Viver é dormir para a realidade intangível.
Há aqueles que acordam no meio do sono ou nem dormem. São os lunáticos, suicidas ou poetas.

terça-feira, 17 de março de 2009

DESUMANIZANDO

E quanto mais me afastava da tal humanidade, e me aproximava do meu eu de dentro, mais conseguia ver do alto as fendas da terra por onde podiam se embrenhar os nós das curvas do meu pensamento e ele próprio se perdia naquela vastidão irregular de tão perfeita. Toda perfeição é imperfeita.
Engraçado como se podia ver o além de tudo lá de cima e como se podia ter certeza de tudo de tanto que não se tinha certeza de nada.
Sensação de que a terra se encaixava em mim por me encaixar nela. Sensação de pousar do alto sobre ela e de segurar suas mãos. A terra me emprestava a distância que nos separava e me emprestava também os sentidos que já nem existiam mais em mim quando era humana. Recuperava os meus sentidos, pouco a pouco, que fazia ter a exata noção do tamanho do meu nada que era tudo o que eu tinha.
Neste momento, eu tinha um poder comparável ao daqueles que já não sentem medo. Eu ganhei aquilo que eu tinha perdido por perder tudo que tinha ganho. Era gostoso pairar sobre as notas daquele silêncio. Respirei por um instante todo o ar que pude que era tanto que parecia vir de dentro também e, de fato, vinha. Aquele ar me enchia à medida que me esvaziava.
E o meu poder só aumentava. Eu sabia que eu podia tudo. A minha falta de humanidade me deixava feliz. Conforme ela se esvaía, eu ia sendo devolvida a mim mesma. E eu ia tomando consciência disso do alto do nada, lá de cima. No ápice deste momento, me atiraria de lá com prazer.

NÃO, VOCÊ NÃO DISSE NENHUM ABSURDO

Não. Você não disse nenhum absurdo. Apenas se alivia das dores.
Não julgue que não possui o direito de remoer o passado. Porque, afinal, quem é que tem o direito de remoer o seu futuro também? As pessoas planejam seu futuro como se existissem fórmulas imutáveis e infalíveis para se viver e, o que é pior, como se soubessem mais do que lhe vai no íntimo do que você próprio.
Sabe, eu até penso que o tempo não se remói mesmo, o tempo só se vive. Ele vai se esgotando por fora porque se acumula por dentro. É este acúmulo que a gente sente vontade de expulsar porque ele não faz parte e vai entrando sem pedir licença.
Feliz daquele que cospe o tempo na cara do tempo de fora que quer entrar.

segunda-feira, 9 de março de 2009

QUASE

Quase que queda
que quebra quartzo.
Quase qual quadra
quadrada que nada,
imperfeita.

Quase que quara.
Querosene que queima
quase que quente.
Quebranto, queimada
indecente.

Quase quizila, querela,
qual queixa qualquer.
Quase que cospe
quiçá o querer
indefeso.

Quase que quarta,
quarenta, quaresma.
Quase querida
castiga, quieta,
inerte.

Quase que acalma
qual química, quinino, cafuné.
Quase querubim, quimera, Quixote.
Quinhão em que não caiba qualquer
iniqüidade.

Quase que coisa quando concreto.
Quisto, queloide, coágulo.
Quase cansado, caquético.
Concha, casulo, cápsula
incarcerada.

Quase que caos
como quando catástrofe.
Quase carcaça carbonizada,
conclusa, inconteste,
incinerada.

Quase conforme
confirma o contrário.
Quase chacota, chacoalha
questão que calha
encravada.

Quase que tudo.
Quase que nada.

ACORDAR

A porta, madeira morta, que convidou a entrar, hoje, torta, convocou a sair.
O café ficou com gosto amargo e o estilete, que esculpia, imprimiu cicatrizes.
A esperança perdeu-se num intervalo qualquer, mesmo vão em que a admiração tornou-se campo desidratado.
É hora de sepultar de vez sementes que não brotarão.
E viva a realidade! E viva os pés no chão!

segunda-feira, 2 de março de 2009

COMO SEMPRE TÃO SÓ (GURI 2)

Vive ora de prazeres pequenos e esperanças grandes,
Ora de prazeres grandes e esperanças pequenas.
Tranca-se pra viajar e faz viagem pra não voltar.
Desmonta castelos de pedra para erguer lar de areia.
Guri nem entende mais o que sente,
como sempre perdido,
como sempre moleque,
como sempre tão só.

Ora despe as cores do dia, vestindo as nuances da noite,
Ora desnuda a sombra da noite, para cobrir-se no véu do dia.
Faz de conta que o mundo acaba pra acabar com o mundo de faz de conta.
Brinca com fogo porque quer se queimar.
Guri é assim, sabe que sim,
como sempre ardente,
como sempre pulsante,
como sempre tão só.

Ora fecha os olhos, abrindo a alma
Ora fecha a alma, abrindo os olhos.
Pega o presente com as mãos pra cumprimentar o passado
E diz pro futuro: eu me perdi.
Guri não tem pressa,
Como sempre ausente,
Como sempre se sente,
Como sempre tão só.

Ora se crê gigante para entender o pequeno,
Ora se entende pequeno para crer no gigante.
Chateia-se com porquês, porque já sabe as respostas.
E responde a todos com perguntas mortas.
Guri não é ortodoxo,
Como sempre paradoxo,
Como sempre tão nó,
Como sempre tão só.

Ora dialoga com seus fragmentos, casando os pedaços,
Ora se despedaça, fragmentando diálogos já descasados .
Mas ainda ri, que não quer chorar.
E ainda chora, pra não congelar.
Porque guri sabe que já não abraça o seu abraço,
Como sempre sem laço,
Como sempre dormente,
Como sempre tão só.

HÁ MÚSICA LÁ FORA ESPERANDO POR MIM

Desculpe se saio assim,
é que a pressa bateu em mim.
A conversa estava boa
e a canção acolhedora.
Dança num passo acertado,
mas algo saiu errado.
Eu bem que tentei do meu jeito
e você do seu,
o ritmo em algum lugar se perdeu.
A gente se desencontrou, amor...
Que seja, então, como for...
Deixei meus espaços abertos,
entreguei meus tons certos.
Você também fez sua parte,
com cadência e arte.
A felicidade não chegou por um triz,
e a gente tinha tudo pra ser feliz.
Vou desligar o som, guardar o cd,
E também a chance de afinar com você.
Tenho que ir embora,
despeço-me, há música lá fora
Esperando por mim.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

A MENINA E A TERRA


A terra amamentava de sonhos o coração da menina e ali, deitada, podia experimentar, com seu corpo, a textura bruta e rugosa daquele tapete sob sua pele rosada e delicada.
E por cima da superfície áspera, a menina quis sonhar mais, e sonhou. Quis sentir mais, e sentiu.
O chão irregular a tocava de maneira inocente, mas despertava um desejo audaz e desmedido de conhecer-se toda.
Fechou os olhos e, agora, podia também absorver o cheiro da terra, cheiro molhado, confundindo-se com sua própria seiva.
A terra causava sensações estranhas na menina que, ainda de olhos fechados, sentia os pêlos eriçando, tal como estivessem germinando.
A menina, antes exposta como uma clareira na mata, já respirava com dificuldade e, assim, arquejando, arqueava seu corpo numa luta bendita consigo mesma. Sentiu-se flor se abrindo. Sentiu também o suor percorrendo caminhos antes traçados por suas mãos, descobrindo cada detalhe de seu corpo, agora seu de fato.
A menina quis falar, sorrir, chorar, mas não precisava. Estava plena de si. Fartou-se de si mesma.
Queria, agora, adormecer porque sabia que, ao acordar, a vida continuaria, o dia seria longo e ainda tinha outras terras para descobrir, muitos sonhos para plantar e irrigar com suas idéias de menina.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

NÃO ATIRE PALAVRAS EM MIM

Menino com coração de cowboy,
o mundo é torto, e daí?
Tragédia vista em revista
e até bem quista por ti.

Mas em nossa entrevista
não feche as portas,
não vista palavras tortas,
Nem as atire assim, assim.
Palavras são copos de vidro lançados,
Estilhaços, pedaços, marcas, farpas
Engastadas em mim, em mim.

Tua fonte me interessa
E eu nem tenho tanta pressa.
O que te falta e o que te sobra?
O que te ergue e o que te dobra?

Não adianta querer o sétimo lado do dado
Ou a terceira face da moeda
Quando a vida é cara ou coroa
e o mundo é uma merda.

Mas em nossa entrevista
não feche as portas,
não vista palavras tortas,
Nem as atire assim, assim.
Palavras são copos de vidro lançados,
Estilhaços, pedaços, marcas, farpas
Engastadas em mim, em mim.

Eu queria só um pouquinho de prazer
Sentar num canto com você
Tomar emprestado o teu suor
tua saliva, tua dor.

A grana acaba, a casa desaba
A garganta seca, a alma aperta
O corpo dói, o coração rói
A cabeça gira, a boca atira.

Mas em nossa entrevista
não feche as portas,
não vista palavras tortas,
Nem as atire assim, assim.
Palavras são copos de vidro lançados,
Estilhaços, pedaços, marcas, farpas
Engastadas em mim, em mim.

Pra que futuro, pra que passado?
O negócio é estar lado a lado.
Eu quero é hoje, eu quero agora
O resto a gente joga fora.

A madeira lapidada foi tosca,
a manhã ensolarada fosca,
e você pega teus problemas toscos e foscos
e vai derretendo tudo com gosto.

Mas em nossa entrevista
não feche as portas,
não vista palavras tortas,
Nem as atire assim, assim.
Palavras são copos de vidro lançados,
Estilhaços, pedaços, marcas, farpas
Engastadas em mim, em mim.

Eu passava desamada, desalmada
Armada, cansada
Mas vi vida no teu ser
E também quis existir em você.

Menino preso na teia
O sistema é mesmo uma cadeia
Dever pedra, dever favor
Nascer escravo e devedor

Mas em nossa entrevista
não feche as portas,
não vista palavras tortas,
Nem as atire assim, assim.
Palavras são copos de vidro lançados,
Estilhaços, pedaços, marcas, farpas
Engastadas em mim, em mim.

Eu te entendo até
Queria nem entender
Porque aí já tinha me mandado
Antes do peito doer.

O ser humano não tem vergonha não
Você tem mesmo razão
Tá com ódio, tá com raiva?
Vai servir sopa envenenada?

Mas em nossa entrevista
não feche as portas,
não vista palavras tortas,
Nem as atire assim, assim.
Palavras são copos de vidro lançados,
Estilhaços, pedaços, marcas, farpas
Engastadas em mim, em mim.

Menino, menininho
Era só um carinho
Te tocar, te sentir
Ver e partir.

Quem vê tua cara, hoje não vê felicidade
Você odeia gente, chama todos de bêbados, sujos, drogados,
malditos hippies pestilentos,micróbios fedorentos
malandros vestidos de malandros, mulambos.

Mas em nossa entrevista
não feche as portas,
não vista palavras tortas,
Nem as atire assim, assim.
Palavras são copos de vidro lançados,
Estilhaços, pedaços, marcas, farpas
Engastadas em mim, em mim.

Eu não te vejo assim
Ainda sinto o menino
Que anda perdido no mundo
Com o mundo dentro de si.

Vai pro mato montar casa de pedra e pau?
Montar estufa, plantar skunk?
Vender no Rio...
Acabar com esta gentalha que te faz mal?

Mas em nossa entrevista
não feche as portas,
não vista palavras tortas,
Nem as atire assim, assim.
Palavras são copos de vidro lançados,
Estilhaços, pedaços, marcas, farpas
Engastadas em mim, em mim.

Eu queria o menino, o homem, a falha
Teu ódio, amor e navalha
Um pouco do mel, um tanto do fel
Entrar inteira em tua fornalha.

Você tira sarro da vizinha ridícula, que é uma mãe chinfrim
Pegou birra da filha pestinha, a Caroline “chorolina”
Aí a menina vai pra escola, educa-se, muda pra doce o que era sal,
Você vê que perdeu a graça, não vai ter do que falar, praticar o teu mal.

Mas em nossa entrevista
não feche as portas,
não vista palavras tortas,
Nem as atire assim, assim.
Palavras são copos de vidro lançados,
Estilhaços, pedaços, marcas, farpas
Engastadas em mim, em mim.

Vamos pegar bexigas pequenas, querido
Encher de água, dar nó, acertar um no outro
As crianças também querem, vai ser divertido
Olhe, você disse, elas estouram e não ferem.

Mas você também diz que grana é tudo
Que Jesus Cristo, sem ela, não é nada
Que melhor é estar drogado, na fantasia
E do que está ruim dar risada.

Mas em nossa entrevista
não feche as portas,
não vista palavras tortas,
Nem as atire assim, assim.
Palavras são copos de vidro lançados,
Estilhaços, pedaços, marcas, farpas
Engastadas em mim, em mim.

Menino, eu queria tão pouco,
Tua voz, teu cheiro, teu gosto
Segurar tua mão, jogar o teu jogo
Me queimar toda em teu corpo.

Sonhos de metal, casa, saúde, amor,
Pra você tudo é grana
Me mandou ter vida social
Transar com um cara bacana.

Você me fechou as portas
Me atirou palavras tortas
Suas palavras são copos de vidro, menino
Assim, atiradas em mim.
Pedaços
Estilhaços
Marcas
Fim.

E eu até te entendo...

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

SOBRE FORMIGAS ?


Fortes sim, meu amigo, e intrépidas também. Bem sei por que queres ser como formigas... vivem à deriva... e tal não é teu maior sonho? Fundamental ser como formigas. Mas não tudo. Venhas, vou te mostrar um pedaço de realidade interessante... As formigas, como dizes, podem até dormir em costas de leões e pegar carona em asas de passarinho, mas a viagem não sai de graça não. Elas pagam, e bem caro, por serem cegas a tudo aquilo que é mais do que o seu mundo bidimensional pode alcançar. Enxergam pequeno e somente andam para frente ou para trás. Disse o físico* que o grilo sabe mais porque, pulando, reconhece a existência de uma terceira dimensão. Mas não queiras ser como grilo não, meu amigo, porque nem formigas, nem grilos, segundo o físico, reconhecem dimensões invisíveis, aquelas tão pequenas que são impossíveis de ver. Aliás, não queiras ser como ser vivo algum, pois que nenhum consegue enxergar tais dimensões cuja existência ainda não foi comprovada, apesar de real... Meu pequeno, sejas só poeta, pois poeta não precisa de olhos, nem de microscópios, precisa apenas daquilo que sempre lhe foi inerente: a imaginação... e a tua, caro amigo, há muito que viaja à deriva e de graça por todas as dimensões...


* Marcelo Gleiser

sábado, 14 de fevereiro de 2009

DEIXA EU DIZER QUE TÔ CANSADO

Deixa eu dizer que eu tô cansado, cansado e com raiva, raiva do mundo doente, da hipocrisia desta roda-viva-gigante. Tô com raiva da puta que me pariu e que me partiu, me partiu, me partiu... Tô cansado do discurso do padre, tô cagando pro apelo da freira. Não quero afagos e palavras bonitas. Dispenso a esmola da piedade. Tô estalando, nos dedos, conselhos, um a um. Hoje, tô carente é de verdade. Que se dane a casa arrumada, o chão limpo, a roupa guardada, se eu abro a janela e não vejo nada, nada, nada. Quem sabe o que é certo e o que é errado? Pra onde a roda gira? Quem escolheu este lado? Tô esvaziando as virtudes das minhas gavetas, elas não nunca me serviram pra nada, nem pra mim, nem pra quem se gaba que as tem. As virtudes já nasceram viciadas. Tô farto da caridade e da bondade excessiva. Tô de olho é na sanidade dos loucos. Eu me deito no chão e me encosto na pedra, a garganta está seca e a fumaça derrete minhas retinas, mas já não arde mais. Não preciso que ninguém me entenda, eu preciso é do meu vazio, da luz da minha cegueira, das batidas rápidas do meu coração, que me avisam sobre ainda estar vivo. Eu quero a vida. Eu quero, ainda, o intervalo entre o meu nascimento e a morte.

ACREDITE EM ALGUÉM...

Acredite em alguém que consegue ter saudades de algo que não houve e que enxerga estrelas vivas. Não as que brilham no céu, porque estão mortas há bilhões de anos.
Acredite em alguém que sente que seu melhor sonho foi aquele em que morreu e que se aproxima sem nem chegar perto.
Acredite em alguém que pensa que todas as histórias começam por “era uma vez” porque sabe que nenhuma se foi de forma perfeita.
Acredite em alguém que da sutileza não quer as migalhas. Que a quer em sua forma exagerada e que, deste prato, come e lambe até o fundo.
Acredite em alguém que se esqueceu de começar para não ter que terminar.
Acredite em alguém que não concebeu a idéia para também não a perder.
Acredite naquele que não é, porque, assim, aprende a ser.

EM SEUS MARES

Ele tinha em si todos os mares. E se estava vivo é porque morria neles todos os dias. Ele se dava e os mares o devolviam no vai e vem das marés.
Vivia mareando sei lá por que razão, à procura, talvez do cheiro de umaheresia.
Paixões que ele inventava mergulhavam em seus mares, mas secavam por dentro. Elas eram loucas, intensas da morte em que eram banhadas desde o início. Paixões morriam afogadas em seus mares.
Ele assistia complacente porque sabia que mares atraíam paixões e sabia que compaixão era insuportável, melhor sem paixão.
Assim, permitia que elas morressem e, com elas, morria também... p´ra renascer?

domingo, 1 de fevereiro de 2009

CARIOCA DA CLARA DO OVO

Mulher bonita passa, colore e agita os instintos mais curiosos irrigados pelos seios do mundo. Desenha vestígios de pés que pairam no ar. Quem os segue se perde nos rastros, cego que está.
Mulher alinhada caminha, porque caminhando, com suas claras curvas que sol nenhum ousou tocar, entorpece olhares, bulindo sonhos, remexendo corpos que se querem nela cravar.
Mulher esperta, sorriso de meio canto de boca-de-carmim, calcula passos, à noite, pelas calçadas vestidas de ondas. Não tem a cor do verão nem cabelos soltos ao vento, mas tem olhar de menina e pele macia.
Mulher de insônias insidiosas que provoca febres, convulsões e ereções... deseja e se faz desejar.
Não vai p’ras baladas, não curte samba, não cai na noitada... mas é graciosa, é carinhosa e é carioca também.

MON AMOUR, MON AMI


Vamos jogar fora as palavras. Hoje é dia de ficar mudo. Vamos agarrar o silêncio que tem dito mais, ou quase tudo. Vamos descobrir algo novo, arranjos sonoros que não chegaram a ser, imagens que não se revelaram, ardendo na volúpia que se enrosca e que me toca e que te toca e dá prazer. Vamos encontrar razões desarrazoadas, doidas varridas à luz de lampião de querosene. Vamos erigir mundos, cair em precipícios, libertar almas, aprisionar corações. Vamos ter pés descalços e mãos despalmadas descortinando nossas retinas, retinindo nossos sons, somando nossas lascívias e lacerando nossas memórias. Vamos inventar outra história, rastrear nossos cheiros, desmaterializar o sexto sentido que há muito se rarefez. Vamos enlanguescer nossas pernas, entreabrindo pudores, enlevando as entranhas que enleiam nossas castidades. Não vamos pedir palavras. Hoje não. Vamos pedir silêncio cortado à francesa...et je ne sais pas pourquoi...mon amour, mon ami...

ESTAR POR DENTRO

Hoje eu poderia, mas não vou poder. Hoje estou numa de me perder. Quero caminhos que levam ao sol. Quero curvas que levam a nada e que trazem de volta a mesma estrada. Quero me perder aqui mesmo e me saciar de possibilidades. Quero chuvas desenhando tempestades. Quero a estação dos lírios. Quero estar são em delírios. Quero estilhaçar o pólen que me habita e polemizar de intenções fecundas. Quero o limite dos corpos e o meu sexo servindo a ele. Quero ser cipó cingindo idéias e, no cipoal das idéias, quero estar deitado em teia de enredos lógicos. Quero a teimosia do dia que, depois de uma noite, retorna, ou das horas que se repetem. Quero me repetir, quero me saber, quero brotar de prazer.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

GRITO


Eu falo, falo pra todo mundo ouvir. Grito mesmo. Berro e digo pro mundo aquilo que ele não quer ouvir. Ele tapa os ouvidos, mas o meu grito ecoa por todos os cantos e por todos os cantos ouve-se o meu lamento, o meu gemido. Que não é de dor, é de revolta, revolta surda, que já não ouve o próprio grito. Não é imposição, não é oposição, é posição. Mas a existência de uma posição implica a existência de outras e acaba por tornar-se oposição e, por vezes, imposição. Ainda assim, eu grito o meu silêncio e a minha posição é ouvida e sentida, sentida, sentida... O mundo ouve e tapa os olhos. É com a cegueira do mundo que eu não posso. O mundo precisa de tato pra saborear o que não vê.

UM SEGUNDO DE SILÊNCIO


Um segundo de silêncio basta. E eu penso o mundo todo, em todos os tempos no meu espaço. Um segundo. Um segundo é sempre menos que alguma coisa, porém é sempre muito mais que outras, por menor que seja ou que possa parecer.

Um segundo requer outras frações de segundos de reflexão e, sem sair do lugar, eu penso meu mundo em um segundo seguido de frações de segundos em que eu penso o segundo.

Segundo minhas reflexões, meu mundo é ilimitado e eu posso pensá-lo no tempo que me convier.

Estaticamente, em um pedaço de tempo, eu o multiplico e penso em todos os mundos possíveis e impossíveis de ser.

Transformo o tempo, transformo o mundo e acordo transaformada para o real não mais real que a minha realidade transformada e vivida.

IDÉIA EM BRANCO

Ontem ele pensou numa frase. Uma frase bonita. Ele pensou numa frase bonita para começar um livro ou um romance, ou uma discussão, ou uma reconciliação, ou um livro que falasse de um romance com possíveis discussões e reconciliações. Era bem simples e ele pensou no exato momento em que ia dormir. Sem rebuscamento, sem artifícios, sem retórica, mas gostosa de se ouvir. Todos gostariam por certo. Ele se levantou para anotá-la, coisas assim devem ser registradas.
A ação teve que aguardar mais um pouco. O telefone tocou, ele atendeu. Teve vontade de dizê-la, mas por um momento não teve coragem. Era tão dele. Ninguém tinha pensado, só ele. Entregá-la assim? Como se não fosse especial? Precisava de um momento especial, de um contexto específico, de uma situação própria. Ele conversou por duas horas ao telefone, o amigo queria perguntar alguma coisa sobre algo que ninguém, nem ele sabia o que era. Ele sentiu-se grandioso por não entregá-la. Terminou, pegou o papel e a caneta, os instrumentos básicos para colocar em ação o seu plano secreto, de registrar a belíssima frase e que, sim, era muito bonita e todos gostariam de ouvir.
Ele escreveria um livro. Uma frase assim precisava ser o começo de alguma coisa.
Mas como era mesmo a frase?
Ele a esqueceu como quem se esquece do primeiro grande amor.
Como ele podia ter esquecido? Tinha sido tão especial, tão dele. Agora nem dele nem de ninguém. Não tinha compartilhado a frase que tinha pensado ontem...
Isso não impediu que, hoje, ele começasse o livro.
Na primeira linha, um espaço em branco. A frase será sentida. Verão como é bonita e como traz boas sensações. Cada um preencherá o seu espaço da forma mais sincera e mais pessoal que puder.
E , assim, todos lerão e sentirão a emoção que não ouviram, mas que saberão não ser preciso dizer.

PASSADO, PRESENTE OU FUTURO?

Para muitos, o presente resume-se em passado e futuro. Vive-se de relembrar o passado e vive-se de planejar o futuro. Poucos são os que vivem o presente no presente momento em que vivem. Engana-se, entretanto, quem quer eliminar a tripartição do tempo, tirando do tempo, o tempo presente, pois se em seu tempo é ausente, se faz presente em outro tempo. O presente aparece no passado com o nome de futuro e no futuro com o nome de passado. Onde será que você está agora? Passado, presente ou futuro? Cuidado que o tempo brinca contigo!

REFLEXÃO

Venero os sentimentos, pois moram na alma silente.
Quem sente ama, quem ama sente.
Venero os pensamentos, pois moram na mente propensa.
Quem pensa vive, quem vive pensa.
Venero as mentiras, pois moram nas verdades da gente.
Quem mente diz uma verdade, quem diz uma verdade também mente.

O AMOR

Introspecção projetada
além da visão limitada.
Secular e imperceptível.
Imóvel,
move a renitente
condição estática
de tudo o que vê.
Não sabe o que é
e não sabe o que é ser.
Nem sabe se sabe que
ser ou não ser
não é a questão.
Mas é o que é.
Êi-lo então.

CALADA E DOR

Na lucidez da noite
e intervalares sombras,
intrigantes ciladas silenciosas
espreitam.
Sagazes da audácia,
revelam a contida
dor humana
provinda de suas
entranhas.
Prosseguem plácidas,
não renunciam
o valor que têm
de fazer sofrer
um homem.

OLHAR FERIDO




Subitamente emergem


lânguidos olhares.


E no reponte fatal,


dois extremos,


frente a frente,


lanceiam-se.


Ímpar a expressão


não fosse o espelho.


Denúncia discreta


da paridade prevista.


Comoção direta


vista a vista.




BOCA ESCARLATE CÁLIDA












Veneno e cor cruel



Engendraram-te.



Sorriso distante



dividido entre



a séria expressão



e o clamor dramático



dos que choram.



Entrementes, certo da



certeza de pertencer



à dona, incerta



de pertencer-se.

ESPERANÇA

Nos conteúdos das imagens não há diferença,
mas é diferente cada nova imagem.
Veja só que o que aqui se vê
é visto também na outra margem.
De vestido novo não se sabe o porquê,
mas sempre o mesmo sentido.
Talvez para fazê-lo pensar
nos novos sentidos daquele já tido.
Ilusão sempre há
para fazê-lo crer em outra possibilidade
quando tristes forem seus sonhos,
quando triste for sua verdade.

PEDIR AO VENTO TEMPO


Sereno vento,

lento... rogo:

serene a vida

que ri e vive

como se não visse logo

que quem caminha

tem nela alento

e o esperar atento

de vivê-la em paz

e se possível fosse,

um pouquinho mais.

domingo, 25 de janeiro de 2009

O BALAIO

A menininha levava o balaio de vime pela seara. Andava em passos lentos para não afugentar os pássaros. Ela gostava de pássaros. Deixava o espantalho espantá-los, que era sua função. Espantalho doido, espantava nada, era ridiculamente espantado pelo vento. E ela, menininha, pelo tempo. Mas não era doida, doida não. Era doce e carregava o balaio como quem carrega um segredo pesado e leve, grande e pequeno, segredo cheio de tudo, segredo cheio de nada...segredo.
A gente do lugar queria saber o que tinha no balaio que a menininha docemente e lentamente conduzia. Esticavam olhos, perguntavam, mas não conseguiam arrancar um nada dali.
O balaio vinha coberto por um paninho de renda bordado. A menininha bordava. Bordava pássaros. A menininha gostava de pássaros. Ela bordava amores também, escolhia lindas meadas para bordá-los, mas os fios escapavam, não terminou nenhum. Terminou pássaros, de todos os tipos, de todas as cores...
Ela caminhava juntando o balaio ao peito, agora tinha pressa. A noite começava a sorrir, os pássaros se recolheram. Balaio da mão ao peito, coração do peito à mão. O que havia ali dentro era a única coisa que a menininha tinha de fato, bem precioso. Tamanho era o cuidado que tinha ao carregá-lo, que quem olhasse pensaria que o balaio é que a carregava. Iam os dois, passando pela noite, pelo vento, pelo tempo...a menina ia com o coração leve, solto.
Chegando em casa, pousou o balaio num canto, onde acesso ninguém tinha. Tirou o paninho, olhou o balaio, sorriu riso de canto de boca que era seu riso matreiro, de quem sabe que segredo bom é aquele que se guarda a sete chaves ou num mero balaio.
Guardou o paninho com pássaros bordados. Lindos pássaros. Adorava... Era a única coisa que bordava com perfeição. Quando pássaro voa, ninguém consegue pegar. A menininha não queria ser pega. Não. Pensamento seu era só seu. Pensamentos são pássaros, são livres. Vão, voltam, não têm destino certo.
A menina não gostava quando a perguntavam no que estava pensando. Não há nada mais próprio do que o pensamento. Pensamento devia ser substantivo próprio, porque é particular, não se divide, é único. Por isso o guardava ali, com carinho de quem acabou de engendrá-lo...guardava com cuidado...ali...no balaio.

CANTIGAR

Há quem diga que contigo a cantiga é contida.
Contudo, comigo cantigo contigo cândidas cantigas com tudo que digo.
Que digas que nem ligas, ou que digam, não ligo.
Cantigas com liga que condiga contigo, comigo, com tudo, ligo.
Cantigas com sumo consumo, consigo cantigar...

sábado, 24 de janeiro de 2009

UM ENCONTRO (2)

Ela procurava luas. Ele as fotografava.
Ela escondia segredos. Ele os revelava.
Ela assistia a vida. Ele a mostrava.
Ela abotoava idéias. Ele descosturava as casas.
Ela detinha a areia do tempo que ele quebrava.
Ela tropeçava em medos que ele driblava.
Ela vestia o coração. Ele desnudava.
Ela escrevia sons com letras que ele pintava.
Ela sempre esteve num mundo que ele traçava.
Ela traçou um mundo em que ele estava.
Ela dormia em sonhos com os quais ele acordava.
Ela tocava o céu do chão que ele pisava.
E mesmo sem se verem, eles tinham se encontrado porque, dentro de si...
Ela teve a sensação de conhecer o que ele conhecia ter em seu peito guardado.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

A VELHA VITROLA


Naquela velha vitrola, acho que se reuniam todos os segredos que até hoje não descobri.
Eu pegava os meus discos coloridos de vinil compactos e ouvia suas histórias, sempre narradas por locutores de voz grave.
Virar o disquinho nunca foi problema. Era até gostoso e dava certa expectativa aguardar a segunda parte da história naqueles segundos. A agulha ia conduzindo a história e nos conduzindo para dentro dela.
Muitas me deixavam insatisfeita. Eu sempre queria dar uma melhorada no enredo. Nunca entendi, por exemplo, porque Cinderela era a única mulher de um povoado inteiro a ter o mesmo número do sapatinho de cristal guardado pelo príncipe.
Talvez ela fosse mesmo tão especial que aquele número estivesse reservado para ela.
Então eu ficava sentada, colada na velha vitrola. Ela era irresistivelmente toda iluminada por dentro. Eu lembro que sempre tentava olhar seu interior por frestas que a revelavam. Havia papéis, fios e tantas outras coisas que nem me lembro mais.
Era possível que naquele mundo misterioso houvesse também pequenos tesouros que nós, crianças, jogávamos ali, prendendo-os para sempre. Nem nós poderíamos mais resgatá-los porque nossas mãos não passavam pelas frestas. A vitrola era um cofre inviolável. E era grande nosso prazer em perder propositalmente coisas ali que jamais seriam lembradas outra vez.
Não quero ter que me recordar de uma certa tristeza calada quando ela se foi.
Com ela se foram todos os nossos segredos, as nossas dúvidas, os nossos mistérios, a nossa infância.
Restou mesmo uma lembrança quase esquecida também.

QUANDO O AMOR CHEGA (GURI 1)

Guri nem percebe quando é enlaçado pelo amor. Ele deseja seu sorriso antes de desejar sua fala, antes de desejar seus lábios, antes de desejá-la.
Mas ele pode desejar outras também, da mesma forma e no mesmo momento. E ele, de fato, até deseja, quer muitas.
Guri está perdido, distraído. Ele não sabe que amor chega assim, sem avisar, que amor afunila quereres, e que de muitas, em breve, vai se ver pensando em uma.
Guri quer se dar, porque sabe que amor devolve.
O amor é brincalhão, ele joga para o alto e sabe que, na queda, acordará os amantes e machucará corações.
Mas guri, quando está acordado para o amor, não teme suas brincadeiras, quer se machucar, porque guri tem alma de moleque e moleque quer viver, quer a aventura, quer se achar, se perder, quer ousar querer para querer ousar.
Guri não tem olhos nem ouvidos. Seus sentidos estão à flor da pele.
Ele estava distraído antes e agora mais ainda. Amor distrai, amor te trai.
Antes, guri dispensava amores. Nunca foi momento. Mas ele não sabia ainda que o momento não fazia o amor, o amor é que fazia o momento.
Quando guri acorda, fica feliz um monte e dá um jeito de o momento ser esse.
Amor é salvação para guri e pode chegar mesmo quando as malas já estão prontas.

ARRUMAR ARMÁRIOS

Toda a minha vida arrumei armários e eles, ao seu jeito, distraidamente, me arrumaram. Cabides enfileirados, roupas passadas e ordenadas por cor, estilo e função.
Sempre há dor no descarte de peças. É necessário para dar lugar a outras. Mas cada peça descartada deixa lembranças, te convida para passeios. Você senta, segura as peças, recorda... Algumas te obrigam a conduzi-las de volta. Elas não querem ser usadas, elas desejam ser lembradas e desejam estar ali. Ali ficam. Você ajeita as calças, que possuem um compartimento só para elas. Sempre há uma ou outra esperando você perder ou ganhar peso, ainda que seu peso esteja inalterado há anos.
Nas gavetas forradas com papel pardo, dobrado para se ajustar ao fundo, as roupas empilham-se sem dó das que ficam por baixo, mas que são agraciadas com sabonetes, perfumando todo o armário, quarto e alma.
Tudo na mais perfeita ordem e você se sente bem, feliz, serviço realizado.
É incrível como organizar um armário te ajuda a compartimentalizar seus problemas, ordenar suas idéias, definir seus amores.
O problema é quando você encontra aquela maldita caixa. Aquela onde foram depositados alfinetes, botões, pedaços de jóias a serem consertadas, um parafuso que saiu não se sabe de onde, uma bateria cujo tipo precisa ser lembrado quando você for comprar uma nova para o relógio que já não usa mais, uma mola que teimou em ser guardada porque sua natureza elástica ainda é um mistério para nós e que não nos permite jogá-la fora (ela sempre tem cara de útil), enfim, toda sorte de coisinhas miúdas que você não sabia onde guardar.
Você sabe que esta caixa fragmenta seu ânimo, te conduz a ruas sem saída. Mas não há como se livrar dela, de seus estranhos objetos.
Sempre existe uma caixa dessas num armário ou estante. Pecinhas reunidas pela sua condição de independência umas das outras. Estão juntas para sempre por serem tão individuais, tão singulares.
É difícil fechar os olhos, ignorá-las e entender que elas jamais serão úteis para você. São depósitos de problemas insolúveis. Difícil enxergar que basta jogar a caixa fora para que, com ela, incertezas e incômodos desapareçam.
Lembre-se, ela nunca lhe será útil. Há muito que você vem utilizando outras peças no lugar daquelas. Acorde. Acordar, de vez em quando, é bom.

SE EU FOSSE VOCÊ

Pensando bem, se eu fosse você, não gostaria de mim, não me daria a mão. Não sou boa companhia.
Tentar me entender? Eu me dou a este luxo, mas vou te dizer, até hoje não consegui e, veja, que sempre tento.
Algumas coisas já sei sobre mim e te aviso como boa amiga que sou: sou do tipo que não combinaria nada comigo mesma, não cumpro. Cumpro só com o que não prometo, o que sei que não vou cumprir. Sou um exagero de dúvidas. Decidir qualquer coisa? Só na hora e, às vezes, é tarde.
Se eu fosse você, passaria bem de longe, não me complicaria por uma pessoa tão complicada como eu.
Eu rio comigo, rio sozinha. Sabe, olho em volta e as pessoas me olham. Eu fico pensando... e daí? Poderiam rir comigo também. O riso contagia. Não explico, não me justifico. Que se danem! Mas eu queria que rissem comigo, que me seguissem na liberdade de rir, mesmo sem motivos. Motivos para quê? Bastam os meus.
Eu choro comigo também. Isso não compartilho. Detesto piedade. Não sinta pena de mim, nunca!
Sou uma pessoa apaixonada. Apaixonada e medrosa.
Guardo minha paixão pela vida, pelas pessoas e pelas coisas em caixas.
Deixo todas dormirem. Tenho medo de abrir. Às vezes espio, mas fecho rapidamente. Vou me alimentando das minhas paixões adormecidas.
Vez em quando uma desperta. Mas eu a embalo de novo. É tão mais seguro! Paixões acordadas têm vontade própria. E eu teria medo de perdê-las.
Controlo minhas paixões. Assim é bem mais fácil.
Sei que um dia alguma acordará e não voltará a dormir. Inevitável que isso aconteça. É assim a vida. E talvez, neste dia, eu até queira isso. Talvez eu mesma abra a caixa para libertá-la, mesmo sabendo que paixões libertas são fugazes.
Não me entenda, viu? Nem tente. Não olhe para mim. Pode ser que eu o guarde em uma caixa e o faça adormecer, por medo da perda, por medo de mim, por medo de você.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

COLORIR É TORNAR REAL

Semana dessas, estava traçando o meu perfil num desses sites em que se conhece pessoas de todos os lugares do mundo. Naquele dia estava feliz, sei lá por quê. E queria demonstrar, de alguma forma, esta realidade.


Lembro que escrevi algo mais ou menos assim: “Sou do tipo que transforma tristeza em alegria, dor em prazer e sombra em luz. ..Passo a vida colorindo o que se mostra preto e branco...Sou feliz... “


O engraçado é que não esperava que ainda por aqueles dias eu fosse conhecer um amigo com uma adorável mania: a de colorir fotos antigas em preto e branco de artistas famosas.
Achei interessante o fato, sobretudo por ter uma relação com a frase do meu perfil. Não comentei a coincidência, não veio ao caso.


Quando fiz a frase, tratava-se de uma metáfora e esse amigo me mostrou como ela podia ser tão literal.


Não sei se ele tem o mesmo objetivo que eu de, de uma certa maneira, dar mais graça à vida, trazer felicidade para o tanto de tristeza que a gente já vive. Bom, eu sei que se esse também é motivo, não é o único.


Ele comentou ser um passatempo, mas passatempo é mera distração, não há responsabilidade quando se faz algo para passar o tempo. Poderia ser prazeroso, isso sim, mas não um simples passatempo. Isso não.


Há empenho, desgaste e estudo. Colorir uma fotografia em preto e branco é redesenhar, redescobrir.


Para ser bem clara, deixe-me dar um exemplo concreto...a escolha das fotografias é meticulosa, o tamanho tem que ser adequado, grande, para se ganhar em qualidade e precisão na hora do resultado. Quanto maiores, menos distorcidas as formas.


Ele me disse que tinha feito uma foto de Maria Bonita, mas não tinha obtido um resultado tão bom porque a foto não tinha tanta qualidade, era de meados do século XVIII.


Disse que fez por considerá-la uma fotografia bonita, uma cena forte. Ele tornou Maria Bonita bonita e não fez isso só com suas cores, fez isso com seu olhar atento. Ele me fez reparar na expressão decidida que, segundo ele, faria qualquer homem pensar duas vezes. Mostrou-me o detalhe de um revólver acima do seio esquerdo, dentro de um coldre.


Disse que, justamente nesta parte, a foto, no original, estava mais desfocada. E foi preciso que ele redescobrisse o revólver, riscando o desenho. Fico imaginando a maravilha desta descoberta. Imagino que se eu tivesse descoberto isso, sentiria vontade, na hora mesma em que me dei a conhecer, de partilhar o fato com alguém. Algo como nascer de novo e ter consciência disso. Um susto doce, gostoso... Pessoa, desculpe o plágio...entenda e não se zangue, afinal, plágio é praticamente ressurreição...


Teimo em dizer o quanto o olhar de Maria Bonita mexeu com aquele homem. Chamou de “olhar de cão” e “penetrante”. Disse pra mim: “Fixe o olhar nos olhos dela.”


Eu estava abrindo a foto, neste momento no computador, e ela demorava a carregar. Ia abrindo lentamente, aumentando a minha ansiedade de, enfim, ver o tal olhar. Quando a mirada pousou em mim, deu para sentir exatamente o que meu amigo disse, olhar de meter medo! Mas algo me assustou mais: o olhar dele. O olhar de meu amigo. E a forma como me fez ver o que eu não veria sozinha. As palavras dele me pareceram mais fortes do que o olhar de Maria Bonita.


Do que ele disse, uma frase ficou na minha cabeça: “Fiz por achá-la bonita...fiz por ela.” E, nesse momento, eu achei Maria Bonita bela, de uma beleza rara. E tornei-me mais próxima dele, embora ele não soubesse. Percebi-o mais humano, verdadeiro, forte e sensível. O carinho pelo que fazia fez crescer um grande carinho dentro de mim, uma admiração e um susto quase tão perfeito e doce como o que ele sentia ao redescobrir detalhes em fotografias.


Eu começava a colorir meu amigo e descobrir nele detalhes.


Acho que, ali, passei a entender mais a sua arte e talvez entender mais alguns motivos que o levaram a praticá-la. Ir colorindo era uma maneira de ir conhecendo, desvendando, tornando real.


Deve ser viciante a arte de colorir pessoas...deve ser viciante a arte de conhecê-lo, torná-lo real.

GOTEIRA

Essa noite eu não dormi, não porque não tivesse sono ou estivesse preocupada com algo. Nada. Deitei cedo e preparei a roupa de dormir, fechei as janelas, arrumei a cama e deitei.


Não olhei o relógio, o sono já me pesava as pálpebras. Deitei na posição em que sempre me deito e isso é bem engraçado, encolho-me como um embrião, o corpo curvado, a cabeça encolhida para a frente e as próprias mãos voltadas para dentro, tortas. Acho que o momento de dormir é meio que uma volta ao útero. É um momento sagrado, em que se ganha liberdade. Ficamos tão livres que nos libertamos de nós mesmos, através dos sonhos, é claro. A respiração fica lenta, o semblante se acalma. Tudo em paz! Até o mais vil dos homens torna-se santo ao dormir.


Dizem que o sono tem vários estágios e eu não sei em qual deles ouvi o som de uma gota, na realidade, uma atrás da outra.


Eu poderia dormir com qualquer barulho, mas se havia algo que me irritava profundamente era ouvir o som de água se esvaindo. Era pior do que se estivesse jorrando. Estava gotejando. Isso me trazia o incômodo de quem espera algo, espera por horas. A água não ia embora livremente, pingava, ia sofrida, morria lentamente.


Em determinado momento eu já sentia meus ouvidos paralisados, dormentes. Eles já nem ouviam mais gotas, ouviam contas de um terço, soluços...Ouvia o tempo ir embora, o sono ir, o amor, a vida. Tudo fugia, escapava. E o que eu podia fazer? Nada. Não dormi.


Ao amanhecer não ouvi mais o som da goteira. O barulho do dia, do caminhar das pessoas, a algazarra das crianças, dos carros, das buzinas, tudo calava a goteira que, tímida, continuava a sofrer em silêncio. Só à noite é que ela se agigantava para me tornar pequena.


Na confusão dos ruídos do dia, eu tentava, desgraçadamente, separá-los, distingui-los, até encontrar o da goteira. Apurava os meus ouvidos, mas não consegui descobrir onde ela se escondia. Deixei pra lá. Preferi me enganar como, aliás, faço com todos os meus problemas. Finjo que resolvo, que eles já não existem. Calo um a um e arranjo sons que me possam distrair. Até no amor é assim, não é? Precisamos ouvir o som de um outro para calar o anterior. Enquanto não ouvimos novos sons, não conseguimos nos livrar daqueles que nos incomodam.


No caso da goteira, eu sabia que voltaria, que não adiantaria muito silenciá-la durante o dia. Então achei melhor conviver com ela, aceitar sua condição desprendida, abnegada. Dedicava-se com sacrifício a cumprir seu destino, não perdia o ritmo. Em outros termos, era até simpática.


Aceitar sua cadência era aceitar o ritmo e a fluidez compassada, se é que se pode dizer assim, da vida.

COMEÇOS

Calvin, meu amigo...há quanto tempo não lhe escrevo, mas entre uma linha e outra de tantas linhas que rabisco, lembro-me de você.

Desta vez lembrei porque é janeiro, tempo de inícios, começos e me lembrei de que você foi a razão ou pseudo-razão para o início do meu blog. Então dedico-lhe também o início de janeiro, o início do ano. Embora, Calvin, eu até ache isso uma grande besteira, sabe?

Início de ano é quase piada. O que muda do dia 31 para o dia 01? A pergunta mais cretina que alguém pode fazer, embora eu também a faça, é: Como você passou a virada?”, como se fosse a única virada de nossa existência. Tamanha é a importância que se dá, que vestes e comidas são escolhidas para se passar o ano inteirinho bem.

Acho que, afinal, a gente merece este engano, não é?

Quem não sabe que as coisas não mudam de um dia para o outro? Ninguém deixa de amar de repente, nem deixa de lado opiniões velhas de uma hora para outra... a única coisa que a gente deixa de fazer de repente, Calvin, é viver. Mas o legal é que não se escolhe data. Porque isso seria bem chato. Já pensou: “E o que você vai fazer na sua virada?”

Ainda bem, Calvin, que a gente não escolhe hora para ir.